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    Artigo

    por Carlos Andrei Siquara

    Edgar Calel: entre o Brasil, a Guatemala e os sonhos

    Há mais de uma década o guatemalteco Edgar Calel tem levado o nome del Pueblo de Chi Xot, pertencente à comunidade indígena Maya Kaqchikel de San Juan Comalapa aos mais diferentes circuitos de arte do mundo. Desde sua primeira residência artística na Nicarágua, em 2007, o artista tem tornado o lugar onde nasceu uma referência constante nos catálogos de exposições coletivas internacionais realizadas em uma ponta a outra do globo, da Argentina à Alemanha, passando por Brasil, Costa Rica, El Salvador, Panamá, Honduras, México, Costa Rica, Canadá, Portugal, Espanha e Suíça.

    Cada um desses destinos passou a fazer parte da trajetória de Calel tanto por meio de sua participação em programas voltados à investigação e experimentação artística, quanto pela continuidade de projetos expositivos. Entre eles, a 11ª Bienal de Berlim, na qual ele exibe um vídeo realizado em parceria com o brasileiro Fernando Pereira, além de fotografias e desenhos. Vale ressaltar ainda a entrada de suas criações no acervo do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, considerado um dos mais relevantes da Espanha, e que, recentemente, adquiriu duas de suas fotografias.

    Todo esse movimento aponta para a projeção crescente do artista no cenário global das artes, o que para ele é interessante na medida em que consegue atrair olhares para uma questão que permeia o seu trabalho: “onde está a cultura?”. A busca constante por reflexões capazes de gerar respostas a essa questão serve como motor de sua produção artística, que, em parte, é marcada pela experiência migratória dos povos de sua terra natal para os países economicamente hegemônicos e da própria resistência local às formas contemporâneas de neocolonialismo.

    “Na Guatemala, uma maioria de migrantes vai para os Estados Unidos com o sonho de ter um salário maior, mas muitas vezes eles têm que arcar com o preço do racismo que também é pago em dólar”, dispara Calel. Para ele é instigante pensar nas relações que são interrompidas a partir desses deslocamentos, assim como nos novos arranjos constituídos quando um repertório cultural segue com o indivíduo migrante.

    “Quando as pessoas deixam um lugar muitas histórias permanecem com elas. Por outro lado, outras ficam inconclusas dentro da comunidade. Então, para mim é interessante perceber como o ser humano, um kaqchikel, faz aquela viagem, e, depois disso, parte de sua cultura se desagrega dentro daquela terra em que ele nasceu, mas outra parte da cultura continua viva nele”, comenta o artista.

    Certamente, boa parte dessas considerações são conduzidas e refeitas a partir de sua própria experiência, uma vez que o artista atualmente transita por diversos espaços, mantendo temporadas quase anuais no Brasil, entre retornos à Guatemala e outras paradas em diversos países. Talvez por isso ele advogue que “existem várias maneiras de criar, produzir e traduzir a cultura”. Nesse aspecto, Calel ressalta a dinâmica da memória como um dos principais recursos evocados por aquele que partiu.

    De maneira análoga, a comunidade também reage aos efeitos das despedidas e às interferências externas. “Há elementos que são globais e que tendem a transformar a cultura e integrar novos elementos dentro daquela tradição que se mantém”, completa ele. E qual é o lugar de Calel nessa teia toda? Ao alinhavar diferentes referências, o guatemalteco, logo numa primeira conversa, revela cultivar as palavras como um contador de histórias, hábil em inserir novos comentários, mas sem perder o fio da meada nem a visão arguta que combina poesia e doses precisas de questionamento.

    Afinal, há conversas que às vezes parecem seguir um roteiro previsível. Mas diante de Calel a chance de isso acontecer é praticamente zero. E tal domínio vai além do registro oral, algo que o conecta às tradições indígenas revisitadas por ele. O artista extravasa suas qualidades narrativas para diversas superfícies e linguagens que compõem seus trabalhos, entre eles a série de esculturas em cerâmica mais recente e batizada “Yakb’elh achik’ (lugar onde se guarda os sonhos)”, cuja estreia aconteceu na primeira edição virtual da Sp-Arte promovida em 2020. Essa série foi produzida em parceria com o artista Benedikt Wiertz no Atelier Xakra 88, o qual foi construído, em Brumadinho, pelo alemão radicado no Brasil há mais de duas décadas.

    Dentre as peças com desenhos concebidos por Calel, chamam atenção aquelas em que a inscrição “kit kit kit” estabelece um jogo ao valorizar as letras também em seu aspecto gráfico sem, no entanto, esvaziá-las do seu significado no âmbito da cultura kaqchikel. “Kit kit kit são os sons de um canto que a minha avó fazia, enquanto caminhava entre as árvores, para chamar os pássaros, que vinham receber os grãos de milho trazidos por ela”, explica ele.

    “Quando ela morreu, eu estava aqui no Brasil, e os trabalhos com essas três letras surgiram dessa percepção de que eu nunca mais ouviria novamente o canto dela. Então, eu passei a transladar aqueles sons para o campo visual. É interessante que nas composições que eu faço você consegue ler essa palavra em várias direções, de cima para baixo, da esquerda para a direita e vice-versa, como se tivéssemos um pouco daquela sensação do som se expandindo no espaço”, relata.

    Além dessas criações confeccionadas em dupla com Wiertz, ele também expôs na SP-Arte desenhos que sugerem cartografias imaginárias, no formato de visões aéreas de comunidades curiosamente configuradas em torno de fragmentos de “tortillas”. Mais uma vez, Calel inspirou-se no seu repertório de matriz indígena, porém em vez de reproduzir o lugar onde nasceu ele concebeu aldeias ficcionais. “Nesses desenhos estão muito presentes temas como a comida, a terra e o deslocamento”, explica. “São espécies de caminhos imaginários. Mas tudo o que se imagina já existe, só que ainda se desconhece”, ri em seguida.

    Dialogam com esses trabalhos outro conjunto de desenhos. Estes, por sua vez, trazem linhas mais expressivas, e, em primeiro plano, estão objetos do cotidiano doméstico. “Se naqueles primeiros desenhos nós vemos as comunidades de cima, nesses é como se déssemos um zoom para ver o que há dentro de suas casas. A composição não é nada minimalista, justamente porque há uma intensidade, há pessoas vivendo ali”, frisa o artista.

    Ao comentar sobre esse microcosmo, ele recorda a convivência com sua própria família, que é constituída por artistas. “O meu pai é pintor, minha mãe produz tecidos, além de todos eles se dedicarem à terra”, diz Calel, que começou a compor quadros com seu pai. Alguns deles, inclusive, foram adquiridos por colecionadores dos Estados Unidos. Ele também pondera que a noção de arte no universo kaqchikel pode abranger uma ampla diversidade de práticas.  “A arte no contexto indígena pode ser um gesto, um som, pode ser contar uma história de terror e ser capaz de gerar um sentimento de pavor naqueles que a escutam”, observa.

    Calel foi o primeiro de sua família a frequentar a Escola Nacional de Artes Plásticas Rafael Rodriguez Padilla, na Cidade da Guatemala, mas ele questiona o que significa ter uma formação artística: “acho que a pergunta pertinente a se fazer é: o que é estudar arte?”, e emenda: “eu fui o único a buscar outras coisas sobre arte na escola”. É justamente a partir desse lugar de constante fricção que ele pensa sobre seu ofício e sua pesquisa, transitando, assim, entre diferentes tradições, sejam aquelas vinculadas tanto a um ponto de vista ocidental, quanto indígena.

    Não é, portanto, à toa que suas obras repercutem por onde passam, desde “Labirinto dos Pássaros” (2008), a qual já foi vista na Costa Rica, no México, nos Estados Unidos, além de Guatemala, e foi criada a partir de uma residência em Granada, na Nicarágua, em 2007. A instalação composta de caixas de papelão com o interior pintado como se fossem pequenos registros do céu sintetiza o tom poético e político de suas criações.

    “Minha ideia era fazer uma pintura do tipo mural nas casas de Granada, mas por serem patrimônio da humanidade esse tipo de coisa é proibido. As cores das paredes não podem ser alteradas. Eu achei aquilo curioso porque aqui e ali se viam marcas globais nas fachadas, e já que eu não poderia pintar sobre aquelas casas, que têm um valor histórico e cultural, eu pensei que poderia fazer isso no lixo deixado pelas pessoas que circulam por lá. Foi aí que me veio a ideia de pintar dentro das caixas”, conta Calel.

    O caráter simbólico desse material logo interessou o artista, que viu naqueles objetos descartáveis um signo relevante para se pensar na arbitrariedade das fronteiras. “As caixas não têm um valor em si. Elas servem para proteger algo que não querem que se quebre ou machuque.  Então, eu trouxe essa referência do céu, que por um lado não conhece limites geográficos e por ele as caixas podem viajar de maneira muito mais livre até do que as pessoas. Essas, às vezes, não conseguem passar por nenhuma fronteira”, critica o guatemalteco.

    Após essa experiência, ele recebeu convites para participar de outros projetos na Costa Rica, em El Salvador, no Panamá, em Honduras e na Argentina, onde novamente se viu instigado, a partir de um contexto local, a estabelecer relações com outras realidades. Naquele momento, em 2011, o que saltou aos olhos do artista, foi o reconhecimento de um histórico de violência que conecta a Argentina à Guatemala, entre outras nações da América Latina.

    A residência aconteceu durante visitas ao espaço “La Perla”, que hoje funciona como um centro de memória em Córdoba, mas, na década de 70, durante o regime militar, existiu ali uma prisão clandestina, onde mulheres e homens foram submetidos a rotinas de tortura, entre outros crimes. “Só de ver aquele espaço a sensação era terrível. Não conseguia nem pensar em nada além da violência e no sangue que se derramou ali. Fazia muito frio e eu ficava pensando nos estudantes, jornalistas e todas as pessoas que estão citadas nas paredes. Eu imediatamente pensei na Guatemala onde tantas outras pessoas também foram mortas, e imaginei como os corpos daquelas pessoas que foram enterradas poderiam se transmutar e retornar como árvores”, recorda.

    “Assim, eu realizei uma ação em que eu caminhava entre as árvores no entorno do local com um facão e cobria todo ele com as folhas que eu encontrava caídas sobre o chão. Eu quis trazer essa imagem da transformação do corpo daquelas pessoas em matéria orgânica reabsorvida pela natureza”, completa Calel.

    Em 2011 ele também veio pela primeira vez ao Brasil, mais especificamente para Belo Horizonte, por intermédio de Marco Paulo Rolla e Marcos Hill que estavam à frente de um projeto de residência. O segundo momento da iniciativa era uma exposição na Galeria Vermelho, em São Paulo. Calel, contudo, chegou na capital paulista com dois dias de atraso, perdendo a chance de garantir um espaço expositivo.

    O artista conta que não tinha dinheiro para cobrir as despesas de transporte, e só depois de relatar isso para amigos e organizadores do evento ele conseguiu recursos suficientes para seguir viagem. “Os curadores acharam que eu não tinha interesse em expor, e não havia mais lugar na galeria que eu pudesse utilizar. Mas o primeiro sentimento que me veio à cabeça foi a vontade de estar na exposição, mas eu não teria nenhum trabalho montado a tempo. Foi aí que me veio a ideia de chegar no local com uma mensagem tipo: ‘estou aqui porque não tenho um trabalho’. E acabei escrevendo: ‘yo estoy aqui por la ausencia de um trabajo (eu estou aqui pela ausência de um trabalho)’”, conta Calel.

    A maneira que ele encontrou para veicular seu protesto surpreendeu a todos e foi baseada nas camisas usadas por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto que se reuniram numa manifestação em São Paulo no mesmo dia da abertura da coletiva. Calel soube disso um dia antes, preparou sua indumentária que foi pincelada com a frase “Yo estoy aqui por la ausencia de um trabajo” e foi ao encontro dos manifestantes acompanhado de uma amiga.

    “Eu encontrei uma quantidade enorme de gente com aquele tipo de camisa vermelha. Uns estavam lutando por não ter acesso à terra, outros por não ter um teto, e eu por não ter um trabalho. Dessa forma, eu estava me unindo a eles no gesto de reivindicação. No fim, cada um de nós compartilhava a situação comum de estar à margem do poder”, sublinha Calel.

    De lá ele seguiu para uma visita ao Museu de Arte de São Paulo (Masp) antes chegar na Galeria Vermelho. “Na exposição, eu fiquei parado no meio das obras. Algumas pessoas começaram a gravar um vídeo. Outras começaram a perguntar se aquilo era um trabalho artístico ou se eu estava procurando um emprego de verdade. Outras me perguntaram se eu havia chegado há pouco tempo no Brasil, se eu era da Bolívia. Alguns até me abordavam querendo saber onde estavam meus artesanatos”, relata Calel.

    Apesar dessas manifestações de preconceito, ele avalia que a performance foi uma grande sacada.  “Aquilo abriu muitas possibilidades de conversa, eu falei com muita gente, e realmente foi tudo muito divertido”, reforça o artista. Alguns frutos desses contatos foram a possibilidade de permanecer mais um mês em São Paulo, podendo conhecer melhor a cidade, e o início de uma parceria com o artista Fernando Pereira, com quem tem desenvolvido produções em vídeo. Calel retornou em 2011 para a Guatemala, e desde então tem frequentemente voltado ao Brasil. “Eu estou entre o Brasil, a Guatemala e os sonhos”, brinca o artista.

    Esses, de fato, o tem levado cada vez mais longe. Em 2013, ele expôs junto com alguns conterrâneos na Suíça, e, em 2017, foi um dos guatemaltecos representadas na coletiva “Guatemala from 33.000 km: Contemporary Art, 1960 – Present”, nos Estados Unidos. Dois anos depois, além de expor no Canadá o trabalho “El rostro de la tierra que mis pies vieron (O rosto da terra que meus pés olharam)” – o qual foi criado a partir de um encontro com a comunidade Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul – Calel realizou uma residência em Portugal e outra mais curta na Alemanha.

    “Em 2019 foi a primeira vez que eu fui pra Europa e havia toda essa questão da memória, de pensar na história da minha família, o que me fez refletir muito sobre essa viagem. Sempre há uma inquietação porque foi da Europa que vieram as pessoas que invadiram nossas terras, e estar lá, vendo algumas coisas com meus próprios olhos, foi um processo muito interessante para mim”, comenta.

    Em 2020, as obras de Calel “viajaram” até a Bienal de Berlim, entre elas o vídeo “Sonho de Obsidiana”, produzido com Fernando Pereira. “Obsidiana” é uma pedra que existe na Guatemala e possui uma simbologia dentro da cultura Maya Kaqchikel. “A obsidiana serve como uma chave para ingressar outras dimensões tanto físicas como espirituais. Por meio dela podemos calcular o futuro, mas também ter acesso ao passado”, explica Calel. O vídeo foi gravado no Pavilhão da Bienal no Parque do Ibirapuera, completamente vazio, e, ao caminhar pelo espaço, o artista busca revisitar reminiscências das bienais de arte em suas lembranças.

    Além desse trabalho, Calel expõe 28 desenhos, duas fotografias que compõem um díptico intitulado “B´atz tejido constelación de saberes” (2015), sendo este parte de uma ação concebida a partir de um suéter azul comprado por seu pai. Esse foi garimpado num dos recorrentes bazares de vestuário com peças usadas e que chegam à Guatemala dos Estados Unidos. Sobre a roupa foram bordados os idiomas das 23 comunidades indígenas da Guatemala, e a própria peça também está em exibição em Berlim.

    “Eu digo que esse suéter é como um céu que te abraça e conforta. Ele é muito lindo e com todos os nomes daqueles povos é muito bom pensar nas vozes deles e sentir como se tivéssemos um superabrigo com todo aquele conhecimento ancestral”, exalta Calel.

    Esse mesmo díptico, no qual se vê o artista vestido com o suéter e retratado em duas posições, de frente e de costas, foi comprado pelo Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia. Para o guatemalteco, a inserção da obra nesse espaço pode abrir caminhos para reflexões que vão além da denúncia contra as formas contemporâneas de exploração de comunidades subalternizadas pelas economias hegemônicas.  “Eu acho que essa obra pode deixar a ver caminhos que nos trazem um tipo de felicidade, paz e tranquilidade. Nos mostra outros lugares que o colonialismo não tocou e devemos desfrutar e proteger”, conclui Calel.