Entrevista
por Alvaro Seixas
New Memeseum
Na primeira parte dessa entrevista recíproca sobre memes, mídias sociais, humor e crítica de arte, o artista Alvaro Seixas interroga a página de instagram @newmemeseum, um perfil anônimo que satiriza as relações institucionais da arte contemporânea brasileira. Iniciada em julho de 2020, a página já conta com mais de 20 mil seguidores e se tornou uma das mais seguidas que satiriza os personagens, instituições e mercado de arte contemporânea brasileira.
(Alvaro Seixas) A história da arte brasileira carece de humor?
(New Memeseum) Acreditamos que sim. A maioria das manifestações artísticas que inclui o humor, a ironia, acaba por ter sua importância reconhecida tardiamente – isso se for reconhecida em algum momento. A arte brasileira tende a assimilar mais facilmente o que parece “sério”.
Atualmente, isso é bastante curioso. Falando mais especificamente sobre os memes, as pesquisas ainda são poucas e restritas ao contexto universitário, muitas vezes atreladas aos cursos de comunicação. Se pensarmos em exposições coletivas no Brasil, são raras as que, até agora, incluíram memes – como foi o caso de À Nordeste, que trouxe as criações do perfil @saquinhodelixo e da influencer Alcione Alves. Para nós, parece misterioso que a arte quase se mantenha indiferente a um tipo de produção que muitas pessoas olham e compartilham diariamente. Ainda não existem instituições que, em seus núcleos curatoriais, se dediquem à pesquisa de memes e, de modo mais amplo, das artes produzida nas redes sociais. E mais: como os museus, que parecem tão preocupados em aumentar sua área de abrangência, ainda não se apropriaram dessa linguagem para se aproximar do público? Se a relação entre arte e vida, que permeia a arte desde a década de 1960, ainda se mantém no horizonte da arte do presente, os memes deveriam estar sendo estudados e pesquisados para além dos muros da universidade. É uma linguagem que tem um poder de alcance e circulação que poucas obras musealizadas parecem capaz de conseguir – a não ser que ela própria se torne um meme.
Mesmo que a distinção entre alta e baixa cultura seja obsoleta, ela ainda parece ser um fantasma que, invisivelmente, fica balizando o que pode e o que não pode ser arte. Achamos que os trabalhos que envolvem humor acabam sendo, na maioria das vezes, barrados nesse crivo espectral e, como resultado, vemos tão poucas produções do gênero mapeadas pelas histórias da arte.
(AS) Muito se fala da figura do hater nas redes sociais. Qual o papel do ódio no New Memeseum?
(NM) Acreditamos que o papel do ódio no New Memeseum seja um combustível para autocrítica. Muitas vezes, ao fazer um meme, nos baseamos em experiências próprias. Com frequência, nos pegamos pensando “puxa, eu já fiz isso”, “eu sou bem assim”, “já passei por isso”, “eu costumo agir exatamente desse jeito”. Construir algo que nos permite ver tão claramente os mecanismos que adotamos para sobreviver no/ao mundo da arte e ver, ao mesmo tempo, os mecanismos perversos que o mundo da arte nos impinge – mecanismos estes que são, à primeira vista, opacos e incompreensíveis – faz com que nos odiemos por ter, em grande parte da nossa trajetória, romantizado a arte. Nesse sentido, o auto ódio é importante: é importante odiar todas os problemas e injustiças do contexto ao qual você está inserido, mas, também, é importante reconhecer e odiar os nossos gestos que contribuem para piorar esse contexto.
Nós estamos ansiando por alguma transformação que possa tornar o mundo da arte um lugar menos tóxico, menos predatório. Nesse ano, muito se proclamou que a pandemia estava mostrando que a arte precisava se reinventar, que as estruturas desse sistema, amparadas e alimentadas pelo capitalismo selvagem, precisavam mudar. Enquanto essa mudança parece cada vez mais longe do nosso horizonte, o que nos resta é repensar a nossa própria posição dentro desse contexto. O contexto pode não mudar, ou mudar muito pouco, mas nós podemos mudar a nossa posição dentro dele, podemos lidar com ele de outra forma ao reconhecer em que medida estamos colaborando para tornar o mundo da arte um lugar pior.
(AS) A crítica institucional do @newmemeseum e outras contas de memes correm o risco de espetacularizar/reforçar/celebrizar os agentes que estão sendo criticados ao projetar os holofotes para um sistema já sob os holofotes?
(NM) Não temos uma resposta precisa sobre essa questão. Para nós, uma das características fundamentais do Instagram é a espetacularização e, por isso, possivelmente não exista escapatória: você está participando do espetáculo da rede social. Gostamos de pensar que, dentro desse espetáculo, ao invés de reforçar/celebrizar os agentes criticados, talvez estejamos apresentando suas outras facetas. Tudo está em evidência no feed, mas o que nós gostaríamos é de mostrar as conversas que ocorrem no inbox. Artistas criticam curadores e arte-educadores; curadores criticam artistas e arte-educadores; arte-educadores criticam artistas e curadores; artistas, curadores e arte-educadores criticam instituições; e assim os agentes vão, criticando uns aos outros, em uma dança infinita. No final das contas, é possível compreender que quase ninguém está confortável com a sua própria posição no mundo da arte.
(AS) Como artista, sempre optei por me expor ao criticar certos aspectos ou mesmo outros artistas, protagonistas e instituições do meio de arte. @thewhitepube não é anônima. @jerrygogosian optou inicialmente pelo anonimato e depois revelou sua identidade. A @artreviewpower100 e a @freezemagazine se mantêm anônimas. Por que a opção do @newmemeseum por um perfil de Instagram anônimo? É uma estratégia inicial? O New Memeseum vai se revelar algum dia?
(NM) Nós optamos por ocultar a autoria da página porque ela poderia ser um ruído desviante. Nosso maior desejo é que as pessoas pudessem olhar para o conteúdo compartilhado, sem serem influenciadas pelas particularidades das vidas dos seus autores. Não que isso pudesse mudar radicalmente a percepção do material compartilhado, mas isso seria um importante elemento da equação.
Muitas vezes, nós nos esquecemos de que um perfil de rede social é uma ficção. A rede social é um lugar de criação autobiográfica. Cada um escolhe fotos, vídeos e conteúdos para compartilhar em suas páginas – cada um faz a curadoria de um “eu” que gostaria de tornar público – e isso ajuda a formar um personagem, que, definitivamente, está longe de dar conta da complexidade de uma pessoa real. Com um apanhado limitado de informações que um perfil oferece, tomamos o personagem da pessoa como a própria pessoa real e, a partir disso, emitimos uma série de julgamentos. Ao compreender isso – e ao compreender que nós, também, nos comportamos exatamente dessa maneira –, foi o que levou o New Memeseum a omitir a autoria.
Talvez, a autoria venha à tona em algum momento. Quem sabe quando o projeto perder o sentido. Acreditamos que o nosso perfil – que é também uma ficção – tem uma data de validade que pode expirar há qualquer momento.
(AS) Há algum limite para as críticas do @newmemeseum? O que faria o New Memeseum recuar numa crítica?
(NM) Ainda não há um limite claro. O perfil é recente e estamos pensando sobre isso, tentando encontrar as linhas de trabalho, tateando os limites. Mas, o que já nos fez recuar em uma crítica, foi quando alguém se sentiu pessoalmente prejudicado por um meme.
(AS) O crítico também tem coração. O @newmemeseum já teve alguma dor de cabeça por conta de um meme postado? Eu já tive várias…
(NM) As dores de cabeça que os memes têm nos causado talvez sejam as mesmas dores de cabeça que certos trabalhos causam aos artistas e às instituições que os expõe. Às vezes, chegam no nosso inbox longas interpretações sobre determinados memes. Os problemas apontados, geralmente, são a respeito da ambiguidade, da dubiedade, da ironia de certas imagens, onde não é possível obter uma única leitura, onde a “mensagem” não é precisa. Mas isso é um sinal dos tempos em que nós vivemos. Todos estamos assombrados com a possibilidade de que as imagens sejam interpretadas de uma maneira “errada”. Isso, talvez, seja mais um fator que faça com que os museus trabalhem raramente com produções que toquem o humor, porque a leitura de certos trabalhos pode escapar de um enquadramento. Às vezes, o humor pode ser assustador, mas pode ser revolucionário e político também.
(AS) O New Memeseum toparia se fosse convidado a expor seus memes em galerias, museus e feiras de arte?
(NM) Temos a impressão que o mundo da arte está cada vez mais confundido com o mundo das redes sociais. É curioso que uma plataforma de personagens virtuais, de auto ficção, como o Instagram possa influenciar profundamente as decisões que desaguam na arte. Cada dia mais curadores estão assumindo a plataforma como ferramenta de pesquisa e acompanhamento, ao mesmo passo em que cada vez mais artistas tem utilizado seus perfis para divulgar seus trabalhos. Nela, colecionadores compram obras diretamente dos artistas, assim como artistas passam a ser representados por determinadas galerias que tiveram acesso aos seus trabalhos através do Instagram. Protestos virtuais são capazes de cancelar exposições e eventos, como são capazes de gerar interesse sobre determinados assuntos e catapultar artistas. Às vezes, ficamos com a impressão de que, assim como existem os softwares responsáveis por gerenciar coleções em museus, parece que o Instagram vem se tornando a plataforma de gerenciamento do mundo da arte. E, se isso, de fato, acontece, o número de seguidores, de likes, views e compartilhamentos passam a ser os principais elementos na complexa equação de legitimação e reconhecimento. Esse ano mesmo vimos surgir no Brasil o primeiro edital de patrocínio cultural que assumiu como critério selecionar projetos, cujos proponentes tivessem somados o maior número de seguidores em suas redes sociais – Instagram e Facebook – e de inscritos no canal do Youtube.
Se é a lógica das redes sociais que parece estar dando as cartas, não veríamos problema em expor nossos memes em galerias, museus e feiras de arte. Se isso acontecesse, nosso maior desafio seria pensar em formas de transpor esse material da internet para um contexto de exposição, de modo que ainda faça sentido para nós.