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    Crítica

    por Constança Babo

    Scrolling The Arcane

    O Presente está marcado por várias crises, entre as quais a pandémica e a ecológica, mas todas se veem interceptadas por uma potência transversal às mais distintas esferas, a digital. Esta última, cuja revolução se manifesta sob a forma de redes e algoritmos, domina os vários campos, desde a comunicação à cultura, fornecendo ferramentas de conhecimento e de ação, ao mesmo tempo que induz difusão, dispersão, efemeridade e, muitas vezes, desinformação.

    Encontramo-nos numa era pós-moderna, na qual Fredric Jameson (1989) identifica formar-se um novo espaço, um hyperspace, da sociedade e do homem, que transcende o corpo físico e as suas capacidades, a par de uma nova condição existencial. Proporciona-se a dificuldade de percepcionarmos e nos situarmos no mundo, cuja acelerada e contínua transformação se exerce numa ininterrupta transição entre natureza e tecnologia, real e virtual, físico e digital. Sugere-se, assim, questionar e repensar a perspectiva antropocêntrica, postulada desde o Renascimento, e procurar novas formas de nos relacionarmos com o outro, com a tecnologia e com o meio ambiente.

    É neste contexto que surge o projeto artístico Scrolling the Arcane com a proposta de problematizar os modelos de computação que coexistem na configuração de serviços e aplicações móveis de cartomancia, astrologia e quiromancia, divulgados enquanto instrumentos de orientação para as mais diversas dúvidas e ansiedades da humanidade. Tais programas são controlados pelas lógicas do mercado e do capitalismo, como ilustram as obras Défense Magique da artista Christina Wörner (Alemanha) e Align Properties da designer Alice Bucknell (Estados Unidos da América). Esta última, no texto produzido também no âmbito do projeto, refere que já Adorno, em 1953, no ensaio The Stars Down to Earth, havia receado o fim do pensamento livre do povo americano em prol de um novo universo de magia que se afirmava como resposta para tudo. Hoje, o mesmo se poderá afirmar na conjuntura das fakenews e dos tweets, exacerbados nos últimos quatro anos do governo americano e cuja extensão é global. Com efeito, como a produtora e curadora de Scrolling the Arcane, Joana Pestana, explana, inaugura-se uma era de pós-verdade e quebra de confiança no Estado social, nas instituições do poder político, nos meios de comunicação e nas empresas de tecnologia.

    O online é, pois, o modelo do lugar desgovernado e desregulamentado e, no que diz respeito à astrologia e domínios afins, recorrendo às palavras do designer Daniel Martins (Portugal) na obra Wandering on Prediction, “you will receive life guides of unknown origin, while wandering through the conditional reality.”

    Como o investigador e urbanista Tiago Patatas (Portugal) explica no ensaio Saber e Imprever, a principal diferença entre as profecias e as previsões é que somente as últimas exigem rigor, ciência e matemática. Porém, como sugere, ao invés de pensarmos o conhecimento científico e a imaginação mítica enquanto dicotómicos, devemos acolher a multiplicidade dos distintos discursos existenciais.

    A partir daqui, Scrolling the Arcane questiona a importância dada às práticas que se opõem à racionalidade científica e qual o lugar do smartphone e do seu ecossistema económico e político. O projeto, no qual os quatro artistas já referidos se juntam a outros seis, David Benquê (França), Diogo Tudela (Portugal), Eva Papamargariti (Grécia), Ken Hollings (Reino Unido), Nestor Pestana (Venezuela) e Raquel Peixoto (Portugal), foi concebido em 2019 e realizado durante os seis meses antecedentes à data da sua apresentação, no passado dia 2 de outubro, na Cúpula do Planetário do Porto. A ocasião foi surpreendente a nível visual e sensorial, agora recordada e reproduzida numa nova escala, em plataforma digital[1] de livre acesso que replica a arquitetura do observatório. Assim se mostra a efetiva exposição do projeto, passível de visitar até ao dia 31 de dezembro de 2020, onde se apresentam os trabalhos concebidos por todos os integrantes do grupo.

    [1] link para acesso a obra: https://www.scrollingthearcane.com

     

    Entre vídeos, realidade virtual, realidade mista, criações digitais e ensaios escritos, observa-se uma heterogeneidade interativa que reflete a realidade criativa contemporânea. Independentemente das práticas, formas e imagens, as obras unem-se numa semelhante forma de experiência estética, performativa e participativa, disponível através de qualquer dispositivo com acesso à página online. Porém, convém reforçar que a visita somente se exerce na sua plenitude através de um smartphone, dispositivo que, tal como é indispensável no quotidiano, se revela também uma mais valia para descobrir Scrolling the Arcane. Através do movimento físico e da deslocação do telemóvel, controla-se o campo de visão e selecionam-se as obras que se pretendem explorar, percorrendo um universo virtual com diferentes astros artísticos. Esta inclusão ativa do espectador, bem como o modelo de exposições virtuais, são cada vez mais recorrentes, não só no domínio da arte dos novos média, como enquanto resposta e alternativa às atuais restrições das/nas visitas físicas aos espaços expositivos.

    E, se ainda prevalece uma acentuada resistência e desconfiança relativamente ao que implica e significa a ascendência do digital na esfera da arte, é importante compreender que, como Edmond Couchot (2015:17) indica “quando a tecnologia é repensada e desviada da sua finalidade instrumental e pragmática, torna-se a ocasião de uma experiência estética, um meio de troca intersubjetiva de emoções, sentimentos, ideias, de conhecimentos”.

    Por certo, recorrendo a Joana Pestana,

    a tecnologia da comunicação, reconstruiu o eu e o mundo e estabeleceu novas oportunidades e novas armadilhas para o pensamento, a percepção e a experiência social.

    Acrescente-se que as novas técnicas digitais ampliam e impulsionam as possibilidades físicas e virtuais, materiais e visuais, tecnológicas, científicas e, claro, artísticas. Com efeito, Scrolling the Arcane abre um novo mundo de percepções e relações que reflete a importância, a inclusão e a presença da arte em todas as esferas. A arte subsiste, sempre.

     

    COUCHOT, Edmond (2015). L’Art Numerique, Des Annees soixante aux annees quatre-vingt, le point de vue d’un observacteur
    https://www.olats.org/pionniers/memoirs/couchot/Couchot-ArtNumerique.pdf
    JAMESON, Fredric (1992 [1989]). Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism. Durnham: Duke University Press.